quinta-feira, 1 de maio de 2014

A Violência Familiar e as Relações de Poder: a diminuição do outro

O Artigo 1630 do Novo Código Civil (2005) em seu Capítulo V estabelece: “os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto menores”. Mais adiante, no Artigo 1634 alínea VII define como competência aos pais o seguinte: “exigir (dos filhos) que lhe prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição”.
As leis foram estabelecidas e as normas são divulgadas, mas o caráter privado da família cria em torno de si um escudo de separação social que favorece todos os acontecimentos bons ou ruins em seu interior. Ainda que existam tais determinações a serem seguidas, a família cria suas próprias leis e sua maneira particular de se relacionar.
Assim como afirma Ferrari (2002):
A família é a constituição de vários indivíduos que compartilham circunstâncias históricas, culturais, sociais, econômicas e afetivas. Família é uma unidade social emissora e receptora de influências culturais e de acontecimentos históricos. Possui comunicação própria e determinada dinâmica.
Entendemos como dinâmica o seu movimento interno, a forma de interagir dos seus membros. Ainda nesta leitura, Ferrari (2002) acrescenta que a família pode ser uma unidade geradora de doença ou saúde, sucesso ou fracasso. E tem sido assim, desde o início!
Se nos perguntarmos sobre a função dos pais nesta família, encontraremos uma resposta que contempla “o ensinar a ser” a partir do modelo apresentado e não apenas do que está sendo ensinado ou dito.
Porém, para aprender de maneira satisfatória, esse ensinamento deve ser transmitido de maneira natural através da autoridade dos pais. De outro modo, Pais que não o fazem de maneira saudável, não conseguem ser modelo, uma vez que os filhos não se identificam com os pais, por não ter sido estabelecida nesta autoridade uma relação de confiança, transparência e afeto, que favoreça a ambos: filho(s) e pai (s) para exercerem cada um o seu papel.
Contudo, o que tem marcado essa aprendizagem ou internalização paterno-materna, baseia-se numa relação de poder adultocêntrica que diminui o outro (criança, adolescente e esposa) e revela uma comunicação defeituosa e doentia. E este tem sido o modelo transmitido nas relações familiares onde existe a violência. Uma repetição de hostilidades e agressões.
Sobre esta comunicação, vale citar trechos de uma pesquisa ecológica realizada por Clarissa de Antoni e Silvia H. koller (2004, p. 312-313) sobre a violência no microssistema familiar da família Silva [1]:
A casa é simples, de alvenaria, localizada em uma rua movimentada de uma favela porto-alegrense. Dia de chuva, muito barro e pouca visibilidade. Uma mulher vem até o portão, ainda incrédula pela presença de pesquisadoras em sua casa numa segunda-feira, cedo pela manhã. Abre o cadeado e solicita que as mesmas entrem pelos fundos do casebre e avisa: “A tranca da porta da frente está quebrada da última briga que tivemos. Ele (o marido) não mandou arrumar, para que as crianças não possam sair de casa na hora da briga e chamar a policia”. No interior da casa há poucos objetos e nenhuma porta interna, apenas cortinas separando os cômodos. As janelas são forradas por papelão, pois os vidros foram quebrados pelos objetos jogados durante as discussões. No ambiente físico há poucos bens materiais ainda intactos e muitos destroços. Este ambiente físico espelha o ambiente emocional: a fragilidade dos vínculos afetivos, o sofrimento causado pela destruição contínua destas relações e a falta de esperança na reconstrução ou aquisição do que foi destruído.

Os membros da família Silva, formada pelo casal e seus quatro filhos (adolescentes e crianças), são vítimas, atores e testemunhas da violência instalada na família, através das agressões físicas entre o casal, do pai para com os filhos e entre os irmãos. Várias causas para estas agressões foram identificadas, entre elas destacam-se: a divergência entre o casal sobre a prática disciplinar utilizada na educação dos filhos, a falta de recursos financeiros, a necessidade de autonomia das filhas adolescentes que desejam namorar, trabalhar, sair com amigos e são proibidas pelo pai, a competição entre os irmãos, furtos cometidos por uma das crianças, ciúmes entre o casal, entre outros aspectos. Até um fato que era visto como motivo de orgulho do casal no início de sua união, a relação inter-racial, atualmente torna-se mais um motivo para as brigas.
Infelizmente esta estória não retrata apenas a vivência da família Silva. Assim como esta, inúmeras famílias contariam estórias semelhantes ou mais danosas em suas relações. Isto porque o fenômeno da violência que aparece no cotidiano da sociedade atual assume diversas formas de acontecer e interferir nos espaços humanos. A relação das pessoas com os eventos violentos passa por distintos graus de ocorrência, intensidade e freqüência, duração e severidade.
Percebe-se que a violência é um fenômeno dependente do contexto, do momento que a pessoa vive, das suas experiências, seus processos psicológicos e de suas características individuais. Concomitante a isso, os atos violentos podem ocorrer, atingir, repetir-se, permanecerem e causarem distúrbios. Os comportamentos violentos se expressam por padrões persistentes de hostilidade e agressividade, pelas quais os direitos básicos do outro ou as normas sociais não são respeitadas. Direitos de se tornar pessoa e conviver num ambiente saudável e íntegro têm sido negados nos ambientes onde a violência doméstica acontece. Violência (s) que transcende o caráter humano e nos leva a questionamentos sobre a existência da família e sua função sobre a vida daqueles que convivem neste espaço.
Se o seu caráter doméstico implica em oferecer segurança, confiança, relacionamento e afeto, este quadro tem sido substituído por agressões, maus tratos e abusos graves contra a pessoa, diminuindo suas chances e seus direitos de se desenvolver e alcançar a paz.
Se trouxermos o conceito do que se considera violência doméstica poderemos visualizar o que acontece nestes espaços. Quem traz tal definição é Azevedo (1998):
Atos e/ou omissões praticadas por pais, parentes ou responsáveis em relação à criança e/ou adolescentes que – sendo capaz de causar á vítima dor ou dano de natureza física, sexual e/ou psicológica – implica, de um lado, numa transgressão do poder/dever de proteção do adulto e, de outro, numa coisificação da infância, isto é, numa negação do direito que crianças e adolescentes têm de ser tratados como sujeitos e pessoas em condição peculiar do desenvolvimento.
É tão paradoxal pensar este ambiente como o espaço familiar, pois entendemos que seus atores precisariam conviver em segurança. Por outro lado, não acreditar na existência da violência doméstica e encara-la como algo natural e quiçá necessária ou “normal” ao casal ou educação oferecida aos filhos, isto sim é angustiante e desesperador!
Talvez não seja pertinente afirmar que o modelo de família hierarquizada do passado está enraizado no modelo de família atual, mas ao direcionar o olhar para a figura de poder do pai/homem sobre a mãe/esposa e principalmente sobre os filhos, alcançaremos o mesmo modelo patriarcal de outrora, com um homem rígido e “poderoso” no comando das pessoas atuando com violência e dominação das suas vidas.
Apesar de todo espaço já alcançado pelas mulheres/mães, e mesmo com o suporte oferecido pelo ECA há vinte anos para a proteção das crianças e adolescentes e da preservação da família, a violência que se configura como um fenômeno dada a sua complexidade, se torna cada vez mais presente e avassaladora.
Para entendermos a presença da VDCA, recorremos ao Dossiê Brasil 2004-2005 VDCA: um cenário em (des) construção de autoria de Azevedo e Guerra para o LACRI/IPUSP em que afirma:
  • É uma violência intra classes sociais;
  • É um fenômeno relacionado, mas não determinado diretamente pela violência entre classes sociais;
  • É uma violência interpessoal;
  • Faz uso de abuso do poder parental exercido por pais ou responsáveis;
  • Há um processo d vitimização em que a vítima se torna subjugada e objetificada;
  • Há uma forma de violação dos direitos de crianças e adolescentes enquanto direitos humanos;
  • É um problema social cuja ecologia privilegiada está na família;
  • Trata-se de um processo tóxico que pode prolongar-se por meses e anos, ao contrário da violência extra familiar.
Toda a complexidade da violência doméstica/familiar que causa a diminuição do outro, é reforçada pelo silêncio inerente aos atos de violência neste espaço por sua configuração e execução. O silêncio que gera também o segredo potencializa as violências nesse microssistema e constrói reféns de si mesmos, pelo medo, culpa e vergonha vivenciados.

Leis de Defesa e proteção às crianças e adolescentes... espaços ainda indefesos!

Cinqüenta e um anos se passaram desde a proclamação da Declaração Universal dos Direitos das Crianças e do Adolescente em 20 de novembro de 1959, Adotada pela Assembléia das Nações Unidas e ratificada pelo Brasil, que condensada em dez princípios cuidadosamente elaborados e redigidos, afirma os direitos da criança à proteção especial e que lhe sejam propiciadas oportunidades e facilidades capazes de permitirem o seu desenvolvimento de modo sadio e normal e em condições de liberdade e dignidade.
No princípio 6º declara que para o desenvolvimento completo e harmonioso de sua personalidade, a criança precisa de amor e compreensão. Mais do que isso:
Criar-se-á, sempre que possível, aos cuidados e sob a responsabilidade dos pais e, em qualquer hipótese, num ambiente de afeto e de segurança moral e material, salvo circunstâncias excepcionais, a criança da tenra idade não será apartada da mãe. À sociedade e às autoridades públicas caberá a obrigação de propiciar cuidados especiais às crianças sem família e aquelas que carecem de meios adequados de subsistência. É desejável a prestação de ajuda oficial e de outra natureza em prol da manutenção dos filhos de famílias numerosas.
A complexidade da violência não se refere apenas ao campo em que ela acontece. Se domestico, familiar, extra familiar. Se for contra a criança ou adolescente, ou se atinge apenas à mulher. O fato é que se constitui um fenômeno universal e por isso mesmo a urgência em se tratar de forma universal.
De todas as heranças socioculturais trazidas das nossas primeiras civilizações, a que mais interfere na atual é a ligada às figuras parentais e o poder implicada a elas. A privacidade adquirida pela família fez com que durante muito tempo as suas relações estivessem “protegidas” do olhar e intervenção social e pública, com a justificativa de que todos os fatos ocorridos no seu espaço tratavam-se de “questões de família” e por isso não seria de domínio público.
Neste ínterim milhares de vidas foram destruídas, mulheres e filhos; várias gerações carregaram o peso dessa instituição privada denominada família e foram submetidas aos abusos e agressões cometidas em sua forma de se relacionar. O mais agravante disso tudo, é em todo esse tempo de silêncio os atos violentos não assumiam tal configuração e eram vistos como: “atos de amor”; “atos de correção”; “para ensinar a respeitar”. Motivos absurdos que justificavam e eram aceitos não apenas no interior deste espaço, mas de maneira sociocultural e talvez esta aceitação tenha perpetuado a omissão e negligência sobre a violência intrafamiliar.
Koller & Antoni apud Bronfenbrenne (2004, p. 297) referem-se à abordagem ecológica do desenvolvimento para fazer uma leitura multissistêmica da violência e destacam:
Em nível de macrossistema, o ato violento diz respeito aos direitos humanos. A pessoa que violenta a outra não a reconhece como ser humano e cidadão de direitos. Tem uma relação de poder com sua vítima, seja por ser hierarquicamente superior (pai que abusa sexualmente da filha dependente economicamente), ou por desigualdade (violência entre pessoas de faixas etárias ou níveis socioeconômicos diferentes) (...) Três papéis tem sido identificados nos atos violentos: a vítima, o ator e/ou a testemunha (...) A vítima é em geral, claramente identificável, no entanto, as testemunhas e os atores também estão envolvidos no ato violento (...) A violência, no entanto, nem sempre é claramente identificável.
No ambiente familiar estes papéis parecem oscilar entre os envolvidos. A vítima pode ser identificada através das conseqüências produzidas, as testemunhas são os que presenciam os atos violentos, e o ator é aquele (a) que os comete. Ressalta-se que o ator se manifesta através da transgressão de normas sociais intra e extra familiares, atuando sob mecanismos de controle, agressividade e hostilidade sobre o outro dominado, garantindo assim a imposição de poder.
Porém, num ambiente onde a violência faz parte da rotina das relações, as pessoas que nelas convivem apreendem esses modelos e passam a atuar desta maneira, ao passo que a vítima assume em alguns momentos as atitudes do ator, bem como as testemunhas também se sentem vítimas por presenciarem a situação de violência.
Isto acontece segundo Freud citado por Souza (1996) “É verdade que o amor consiste em novas edições de antigas características e que ele repete reações infantis. Mas este é o caráter essencial de todo estado amoroso. Não existe estado deste tipo que não produza protótipos infantis”
Violência que se faz presente em todas as categorias de família, e altera significativamente o caráter e a sua função. As crianças se tornam adultos e trazem uma carga inconsciente de traumas, disfunções, medos e hostilidades ligadas aos papéis e figuras parentais e ainda que tentem se libertar, a lembrança do passado os aprisiona e os mantêm reféns. Aprisionados em si mesmos, em suas lembranças pelos sentimentos e modelos infantis que os levam à repetição da dinâmica, dos modelos das relações de violência e principalmente da dor.

Autora: Elizete Gonçalves Silva - Psicóloga com atuação Clínica, Hospitalar e Escolar há dez anos. Especialista em Saúde Pública – questão da Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes pela Universidade Cruzeiro do Sul – São Paulo. Participa da Assessoria Técnica Estadual do PAIR em Rondônia, vinculado à Secretaria Especial de Direitos Humanos; formadora no Projeto Escola que Protege; atuou como Professora Colaboradora na Universidade Federal de Rondônia – UNIR Campus de Guajará-Mirim; Psicóloga Clínica da Policlínica Osvaldo Cruz em Porto Velho/RO. Cursando Especialização em Neuropsicologia Clínica pelo CPHD/INAP de Recife-PE; Coordenadora do Grupo de Estudos em VDCA; orientadora de TCC nas áreas de psicologia clínica e hospitalar; Mestranda no programa Mestrado Acadêmico em Psicologia–MAPSI/UNIR.

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