quinta-feira, 8 de março de 2012

A CRIANÇA ESCONDIDA DENTRO DE NÓS

A CRIANÇA ESCONDIDA DENTRO DE NÓS
Maria Helena Pereira Franco

Introdução: a experiência

Quando as pessoas crescem, tendem a pensar que a infância ficou para trás, que deixou apenas lembranças, algumas das quais podem ser ativadas, um pouco como se fossem uns álbuns de família que tiramos da gaveta de vez em quando. De certa forma, é isso o que acontece. No entanto, quando um adulto se comporta de maneira leve, ou se encanta com uma vista bonita ou se sente como se tivesse sido repreendido ou grita de terror quando vê um filme de medo, ou brinca com um trenzinho, está, então em contato com sua criança interior. Esta está ali viva, dentro do corpo do adulto. A pessoa que perde contato com sua criança interior, está sempre sisuda e não vê graça na vida. Isto se deve ao fato de a criança interior, energética e brincalhona, ter sido enrijecida, escondida ou “colocada no inconsciente”.
Pode também ser que exista um outro lado desta criança que é mantido fora de visão. Trata-se da criança que é triste, infeliz, solitária ou amedrontada. Para alguns adultos é tão insuportável estar em contato com estes sentimentos maus que eles não os admitem no seu consciente. O preço que pagam por isto é a perda total de seus sentimentos e emoções, para poder viver em mundo sem cor e sem movimento. Isto pode ter sido mesmo necessário para sobreviver. No processo de sobreviver, tanto as experiências boas como as ruins podem ter sido suprimidas.
Não importa o que aconteça, um bebê sempre lutará para conquistar amor. Nessa fase, ter amor e aprovação é o que pode ser chamado de vida, é tudo que o bebê possui. Ele precisa acreditar que aqueles que cuidam dele são bons. Se for maltratado, sem ninguém que o proteja, será necessário que ´morra´, ou seja: que retenha todos os sentimentos resultantes de ter sido mal-tratada, como raiva e revolta, que os mantenha fora da consciência para evitar sofrer novamente. Isto permite que ela imagine e acredite que seus cuidadores são bons, ou seja: passa a idealizar aqueles que a trataram mal. Este processo leva a criança a criar um ´falso self´ que, aparentemente, fala e faz o que é esperado ou aquilo que é considerado normal. A criança pode tentar se relacionar e, de alguma maneira, ela consegue. No entanto, por dentro ela pode se sentir vazia e ter grande dificuldade em fazer um contato genuíno com outras pessoas.
Ás vezes, relacionamentos muito próximos são evitados, diante da possibilidade de que a criança solitária, assustada e aterrorizada venha a emergir e dominar a pessoa. Se as primeiras experiências levaram a criança a acreditar que o amor é seguido por vulnerabilidade e depois terror, a proximidade com um adulto pode trazer o medo da repetição dessas experiências. Geralmente, as primeiras experiências não são relembradas de modo consciente e a pessoa não consegue entender o que levou os relacionamentos a darem errado.
As experiências traumáticas freqüentemente acontecem antes que a linguagem falada tenha se desenvolvido. Nossa primeira forma de linguagem se dá pelas sensações corpóreas e imagens visuais, como nos sonhos. O terror pode ser simbolizado nas várias formas de pesadelo. Na terapia, quando a pessoa começa a recuperar essas lembranças na consciência, parece que ela está abrindo uma “caixa de Pandora”. Os sonhos são importantes porque podem descrever simbolicamente a experiência pré-verbal do bebê. Os sonhos e as sensações corporais são, assim, a “voz” da criança interior, expressa na linguagem do inconsciente. As tentativas para manter retida a criança interior são em vão, porque ela não pode desaparecer simplesmente. Sua voz, se não for ouvida pelo self adulto, “fala” pelas linguagens do inconsciente, por meio de sensações ou sintomas físicos, sonhos e comportamentos nos relacionamentos. O corpo pode ter enxaqueca, asma, erupções de pele, úlceras, até mesmo câncer. Outro indicador freqüente é a recusa a se alimentar (anorexia) ou forçar-se a vomitar (bulimia). No nível inconsciente, levar-se a morrer de fome é como se a criança interior dissesse: “Não quero ter coisas ruins dentro de mim, não mereço viver, é tudo culpa minha”. Comer compulsivamente é como se a criança interior tentasse preencher o espaço dentro dela, para sufocar os sentimentos de dor e terror.
É claro que nenhuma dessas “soluções”, morrer de fome ou se entupir de comida, lida com o problema verdadeiro e pode mesmo levar à morte.
A criança interior infeliz estará presente também nos relacionamentos, o que é perturbador para nossa vida sexual e social.
Se o cenário inicial tiver sido de abandono e negligência, o adulto pode repetidamente escolher parceiros que sejam esquivos ou o abandonem. Se tiver vivenciado no início da vida experiências de violência física ou sexual, quando adulto poderá escolher parceiros que sejam sádicos ou violentos ou que sejam passivos ou masoquistas. Se a criança interior não for ´ouvida´, a mensagem será repetida mais e mais vezes.

Defendendo a criança ferida
Em condições adequadas, o bebê pode sentir-se seguro e cuidado por alguém acolhedor que lhe mostre, sem palavras, que ele é bonito, bom e querido. Isto lhe dá uma autoconfiança que durará toda a vida. Durante infância e adolescência este indivíduo desenvolverá uma versão internalizada da pessoa que o nutre. Esta figura internalizada pode ser vista como um “defensor interno” que pode dar suporte à criança. Assim sendo, mais tarde, na vida adulta, também poderá sentir-se acolhido e, por meio disso, desenvolver uma personalidade capaz de lidar com adversidades e que se sente real e verdadeira. Esta pessoa poderá, por sua vez, ser sem dificuldade o defensor externo para uma criança ou adulto. Cada pessoa precisa desenvolver esse defensor interno - que apóie sua criança interior – e também um defensor externo, que possa apoiar os outros. Com freqüência, as pessoas que são boas como defensores externos são levadas a optar por profissões ligadas a cuidado – enfermeiros, médicos, psicólogos - ou podem tornar-se pessoas a quem amigos e colegas recorrem freqüentemente com pedidos de ajuda e conselhos. Aquele que nunca teve a chance de desenvolver seu defensor interno pode receber ajuda para isso por um outro defensor externo/terapeuta. Não importa quão ruins tenham sido as experiências no início da vida, para a maioria das pessoas algum traço de um eu-criativo remanesce desse período. O defensor da criança interna pode ajudar esta parte da pessoa a crescer. Algumas vezes é difícil acreditar que algumas pessoas sobrevivem a algumas experiências de intenso sofrimento. Mas elas sobrevivem e, às vezes, alcançam isto de forma saudável e com bem-estar.
A razão para que isto aconteça não é devido a uma característica especial do terapeuta, mas ao fato de que a natureza nos muniu de ciclos de criatividade e reparação que nos capacitam a exercer a autocura (with a little help from my friends!).

Dois ciclos da Natureza

Existe um ciclo criativo na Natureza que podemos conhecer sem conceitualizar. Mesmo uma tarefa cotidiana tem elementos de nutrir – energizar – chegar ao pico – relaxar. Por exemplo, no caso da jardinagem, Você pode se nutrir tomando um cafezinho e pensando na tarefa. Você prepara as ferramentas e o material necessário. Você coloca energia no trabalho, quando cava e semeia. Então, você chega ao pico. Trabalho feito! Você dá um passo para trás e admira sua criação. Você pode agora relaxar, lavar tudo e permitir que outras pessoas dividam com você seu prazer e realização. Um defensor externo ou a mãe ajudam a criança real ou a criança interna a passar por um processo semelhante. Em primeiro lugar, para nutrir, abraçar e encorajar a criança, física e emocionalmente. É importante que as necessidades da criança sejam prioritárias. É possível que amor demais seja sufocante. Assim, na parte de energizar do ciclo, o defensor/mãe facilita para que a criança brinque e tenha atividades. Novamente é importante que a brincadeira seja aquela que a criança deseja fazer e não a que o adulto julga a melhor para ela. No pico de alegria e prazer, o defensor é uma testemunha e aquele que reconhece as conquistas da criança, por exemplo, quando a criança faz seu primeiro castelo de areia e chama o adulto para ver: `Olha o que eu fiz!`. Na fase de relaxar, o defensor/mãe estimula a criança para descansar, divagar e dormir. O defensor interno do adulto pode encorajar a criança interior dele para ´curtir´ esse processo ou um terapeuta/defensor pode encorajar a criança dentro do adulto para que faça o mesmo. Embora seja necessário prestar atenção na criança ferida ou abusada dentro de uma pessoa, é importante desenvolver a criança criativa ao mesmo tempo. Às vezes, as experiências a serem trabalhadas são tão estarrecedoras que só podem ser encaradas com a ajuda da criança criativa que há dentro da pessoa.
O ciclo reparador (de enlutamento) oferece a cura feita pela natureza, a reparação para o trauma. Muitos trabalhos foram feitos para tentar entender o processo curativo de enlutamento pela morte de uma pessoa querida. Muitos pensam que esse processo diz respeito a chorar e prantear. Na realidade, há muito mais do que isso. O enlutamento pode ser entendido como um processo natural de cura não somente para o trauma do luto, como para qualquer trauma: abuso sexual, violência, abandono ou outros.
A seguir, veremos os elementos básicos do enlutamento, lembrando que não encontramos necessariamente o movimento de uma fase para a outra.
1. Evento traumático: o choque físico e emocional galvaniza o corpo e o psiquismo. No enlutamento, isto poderia se dar por testemunhar o momento da morte ou por ouvir a esse respeito. No abuso,poderia ser o momento em que ele aconteceu ou pro relembra-lo e revive-lo. Uma reação imediata pode ser gritar, chorar compulsivamente. Não é freqüente que a pessoa fique parada nesta fase, pois a exaustão física a conduzirá para as seguintes.
2. Entorpecimento: ocorre com a perda de sensações e sentimentos, às vezes acompanhada por uma profunda depressão. Já foi descrita como ´afundar em um buraco negro´. Como nas outras fases, é possível estacionar aqui e não se mover à frente.
3. Descrença: uma reação inicial é a de negar que a pessoa amada está de fato morta. As influencias sociais sobre a pessoa tendem a apoiar mais a realidade do que a fantasia. No entanto, no caso da pessoa que sofreu abuso, ela será a primeira a negar uma experiência que ponha a culpa em alguém que ela ama. E mesmo quando outros membros da família ficam sabendo, até eles tenderão a não acreditar. Infelizmente, até pouco tempo atrás as influências e pressões sociais tendiam a negar a realidade do abuso.
4. Busca: no enlutamento, toma a forma da crença de que a pessoa morta está viva e pode ser encontrada andando na rua ou em algum lugar familiar. No caso de abuso, pode ser a procura pela pessoa boa e idealizada que, como é imaginado, protege e cuida da criança.
5. Idealização: No enlutamento, dá-se quando o lado bom da pessoa amada é relembrado e idealizado. No caso do abuso, o perpetrador é idealizado, como já descrito. É freqüente ficar parado nesta fase. Há uma enorme pressão social para ´honrar pai e mãe´, mas o efeito é de estancar o processo de luto e deixar a pessoa em um estado não saudável.
6. Chorar e se lamentar: esta é a parte mais facilmente aceita no processo de enlutamento. Infelizmente muitas pessoas bem intencionadas tentam ignorar ou impedir esta fase. No abuso acontece quando a pessoa realmente se permite sentir a gravidade e o horror do que lhe aconteceu.
7. Raiva enfurecida: com freqüência as pessoas sentem raiva da pessoa que, ao morrer, as abandonou. É útil que elas possam expressar essa raiva com uma pessoa em quem confiem. Também neste caso pessoas bem-intencionadas podem tentar abafar esta fase. No caso do abuso, pode ser a fase em que a criança interior finalmente se volte contra o perpetrador – encorajada pelo defensor interno ou externo. Também é possível estacionar nesta fase, freqüentemente em combinação com a anterior, de maneira que uma raiva ativa seja seguida por um choro mais silencioso e assim por diante.
8. Percepção da realidade – contradições depressivas criativas: no enlutamento a pessoa começa a aceitar a realidade da perda e tanto as partes boas como as más da pessoa são vistas em um todo. De maneira semelhante, no abuso a pessoa sente tanto a crueldade quanto a bondade do outro, em um todo. Mas isto é contraditório e uma ruminação depressiva pode acontecer, com tempos de insight e mesmo de felicidade.
9. Relembrando: tanto no enlutamento como no abuso, há um tempo para se lembrar de todos os tipos de experiência, incluindo aquelas que tenham sido anteriormente inconscientes. É importante encorajar este processo e será de grande ajuda ter um bom defensor que seja também um bom ouvinte.
10. Síntese: no enlutamento, todas as partes da pessoa perdida são internalizadas e ela passa a viver no interior da pessoa enlutada. No abuso, a pessoa pode ou ficar indiferente em relação ao perpetrador ou vê-lo como é no presente (se estiverem vivos), ou seja: pessoas velhas que não conseguiram evitar seu comportamento.
11. Continuando: O luto está resolvido e a vida está aí para ser vivida. A terapia muda no sentido de encorajar a criatividade e finalmente chega-se ao término.

Defensor Enlutado
Nutrição – continência Torpor, descrença
Afirmação do real, rememoração Procura, idealização
Acolhimento, energização Lamentação
Rememoração com continência Raiva
Realidade da perda Pico do enlutamento (agudo?)
Ouve, acolhe Rememora
Encorajamento, relaxamento Relembra do passado
Interpreta, reafirma Sintetiza, continua
Fim e novos começos Continua

O terapeuta como um defensor

A coisa mais importante que um defensor pode fazer é ouvir e estar com a pessoa, dando-lhe atenção integral. Parece simples e fácil, mas embora seja verdadeiro por um lado, as pessoas na nossa cultura raramente dão ou recebem este tipo de atenção. É importante criar um lugar seguro para que a criança interna possa contar sua história. Isto só é possível quando uma confiança considerável, confiança e mesmo amor tenham nascido entre o defensor e a criança interior. A criança interior pode ´falar´ de uma experiência pré-verbal, de maneira que ouvir pode incluir mensagens do corpo ou do inconsciente, como nos sonhos. Tais mensagens precisam ser ´traduzidas´ para linguagem comum e esta é uma habilidade que o defensor externo precisa aprender. Outra habilidade é facilitar a pessoa para que os ciclos criativos e
reparadores descritos anteriormente sejam desenvolvidos. Nada do que foi dito acima vai funcionar se a criança interior ou a criança real não se sentirem em segurança, como um bebê que se sente seguro nos braços da mãe. Não se trata de uma habilidade, mas de uma maneira de ser e de cada pessoa se relacionar com a outra.
É importante que o defensor não se coloque como paternalista, pois mesmo o paternalismo benevolente é mau para a criança interior. Por fim, é crucial que o terapeuta esteja em contato com sua criança interior e que tenha elaborado suas situações de enlutamento e abuso.

A função do defensor para a criança interior pode ser resumida em cinco papéis:
• nutridor
• testemunha (acompanha a pessoa, quando ela revive os traumas).
• protetor contra o que foi feito para a pessoa
• tradutor
• apoiador da criatividade e do defensor interior da pessoa.
No entanto, é importante ressaltar que apenas o profissional especializado pode ser o defensor. Na vida diária, no trabalho e no lazer, qualquer um pode ser um tipo de defensor. Enfermeiras podem ser defensoras de pacientes, professores podem ser de seus alunos, pajens podem ser de bebês e assim por diante. Somente quando a pessoa tiver sido gravemente abusada na infância é que é aconselhável que consulte um defensor da criança interior/terapeuta.

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